guia prático pra lugar nenhum
2 min readMay 12, 2021

na época eu lia bukowski, escrevia uns versos toscos e desenhava coisas num caderno de capa de pele preta.
coisa1: suas mãos
coisa2: a linha do seu queixo
coisa3: eu, com aquela cara aguada de ansiolítico desbotando a vontade de morrer, aparentemente feliz por pelo menos o-tempo-suficiente-pra-querer-me-lembrar-depois, que foi a razão pela qual desenhei. em duas páginas seguidas.

fiquei alisando as folhas na hora do almoço. das poucas memórias boas que aquele ano deixou. nomes, datas, pessoas inteiras viraram um apagão. chororô no banheiro, disso lembro. em casa pela manhã, na hora do recreio e depois a noite. d i a r i a m e n t e. nada era ameno, tudo era ameno, como se viver e morrer fossem exatamente a mesma coisa o tempo todo.

quando contei pra joice ela não acreditou.

você é engraçada, ela disse. eu sei. não era bem esse o critério que a psiquiatra usava, mas ainda sou. mais agora sem o tarja preta, quero crer.

quando contei pra ele fez sentido. mas fez mais ainda ontem na terapia quando eu disse que sinto culpa o tempo todo e o tempo todo acho que estou escolhendo cometer um erro.

mas é o que você quer fazer.

é o que eu quero fazer. ser feliz com as coisas pequenas, com o que tá à mão, com o que não faz planos e não demanda mais do que estar presente. tudo o que eu tenho pra dar é estar presente agora. já não tenho os depois.

é o que eu quero fazer: ser feliz. parar de comer carne um dia, sem ter feito o plano, comprar pó descolorante e mudar a cor do cabelo ainda essa semana. é o que eu quero fazer, falei, mas é como se todo mundo tivesse o direito menos eu.

a felicidade?

queria voltar a ler bukowski porque ele entendia bem algumas coisas. aquela coisa de guardar alguém nos centros do que resta quando a gente nunca mais se vê de novo. ainda que a gente se veja de novo, essas de agora vão ser memórias boas que eu não sei mais desenhar como a antiga, tão nítida no grafite sujo da página falando de um tempo que passou. passou. passou. e nos centros que sou do que restou, se tornou outra coisa. que eu quero, por favor entenda, eu quero. só não sinto que devo viver.

ser feliz parece tão inteiro e definitivo. eu sempre fui tão (jack) por partes, sempre separei compartimentos.
“se eu te deixar entrar, você nunca mais vai querer ir embora”.
se eu for feliz agora, quando ele se for, quer dizer que vou ficar triste?